jueves, 8 de enero de 2015

Do Charlie Hebdo ao Syriza: o regime contra-ataca

(Tradução portuguesa do último post diste blog. Muito obrigado, companheiro Carlos Leite!)
A propósito do atentado de ontem contra o Charlie Hebdo, partilho um artigo sobre as caricaturas de Maomé que publiquei em Viento Sur faz agora quase 9 anos. Tudo o que nele disse continua, para mim, perfeitamente válido. Haveria apenas que acrescentar um matiz importante. Hoje, o que era um fantasma terrorista sob o qual queriam ocultar-se as resistências reais ganhou corpo. Do lado árabe-muçulmano, do lado dos colonizados, tanto nos seus próprios países de origem como no espaço colonial importado para as metrópoles, um pequeno sector assumiu como sua a imagem fantasmal do islamista-terrorista produzida pela propaganda neocolonial do Ocidente. Hoje existem realidades como o Estado Islâmico ou as diversas “franchises” da Al Qaida cuja delirante materialidade de ectoplasma não as impede de assassinar, com pretextos teológico-políticos, pessoas de todas as religiões, quer sejam yazides, cristãos do Oriente ou muçulmanas. Pouco importa que este tipo de subjectividade política delirante e desligada de qualquer processo de libertação anticolonial tenha sido criado ou financiado directamente pela CIA ou outros serviços ocidentais, como aconteceu com a Al Qaida no seu tempo, ou que tenha aparecido espontaneamente, como, segundo Aristóteles, podiam aparecer criaturas infecta dos miasmas. O que importa é que essa imagem do “mouro mau” é a própria imagem do colonizado produzida pela dominação colonial, uma imagem que, assumida pelo colonizado, reproduz ao infinito e de modo nenhum anula essa dominação. O olhar colonial cria o bárbaro, o incivilizado, justificando assim sobre o nada moral e cultural deste último um presumível direito de tutela — mais ou menos paternal ou mais ou menos violenta — dos civilizados sobre os bárbaros. Os assassinos dos jornalistas de Charlie-Hebdo são os tristes agentes dum acto de propaganda colonial pela acção.
A materialização do fantasma colonial do terrorista islâmico, do bárbaro assassino, ou, do nosso ponto de vista, a passagem ao acto daqueles que assumem, entre os colonizados, essa imagem como sua, não “confirma” o olhar colonial, antes testemunha o seu carácter brutal e delirante. O bárbaro terrorista produzido pela relação colonial existe, mas a sua existência é produto dessa relação, assim como as “raças inferiores”, cuja existência justificaria a “dolorosa necessidade” dos campos de concentração, dos guetos, da detenção penitenciária de massas, da deportação de massas ou inclusive do extermínio, são produto dos campos de concentração, dos guetos, da segregação, etc. O racismo — todo o colonialismo se baseia numa doutrina racista — cria os seus próprios objectos e justifica assim a verdade da sua doutrina. O menino judeu e andrajoso que no Kapputt de Malaparte sai dum buraco do muro do Guetto de Varsóvia é morto como “uma ratazana” pelo soldado alemão que acompanha o governador Franck e o seu convidado italiano porque as condições desumanas do guetto o reduziram a essa condição. Dois tiros e prossegue o passeio dos notáveis à volta do muro do guetto. As justificações “objectivas” do racismo são produtos duma violência racista sobre os corpos e as mentes que cria a raça inferior, assim como a relação social de escravidão criava o “escravo por natureza”. O racismo é sempre um discurso performativo, um discurso que cria os seus próprios objectos.
O mesmo deve ser dito do “terrorista islâmico”: também é um produto duma relação e dum olhar, o resultado dum cruzamento atroz de olhares. Não estão aqui em jogo nem o Islão, nem o Cristianismo, nem um suposto enfrentamento de civilizações, antes uma relação colonial que produz os seus próprios sujeitos. Isto não torna bons nem de modo nenhum justifica os assassinos torvos e obscurantistas que assassinaram ontem alguns dos melhores humoristas gráficos da Europa, antes pretende situar no seu contexto real o que ontem aconteceu, convidando-nos a sair do círculo vicioso e a nos submetermos ao ditado dum poder colonial que quer continuar a reproduzir uma fractura entre um Nós e um Eles. O beneficiário directo destes crimes não será directamente o fascismo, mas o conjunto do regime neoliberal e as suas relações neocoloniais tanto internas como externas. O primeiro a abrir a boca para se aproveitar do sangue derramado foi, não Marine Le Pen, mas o infame primeiro-ministro da Troika na Grécia, Samarás, que afirmou que este atentado é o resultado do “laxismo” em matéria de imigração proposto pelo Syriza e pelas esquerdas europeias. De certo modo, o atentado de ontem, como o dum já remoto 11 de Setembro, fala, através dos corpos dos humoristas ontem assassinados, ao conjunto das forças sociais que hoje na Europa, de forma cada vez mais potente, questionam este horror. Há que deter os assassinos, mas sobretudo há que deter a máquina que os produz.

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